domingo, 26 de fevereiro de 2017

Divulgação científica



O duelo dos mega-journals

Disputa entre PLOS One e Scientific Reports aponta mudanças no mercado das publicações científicas






Os mega-journals, revistas científicas que publicam um grande número de artigos em acesso aberto na internet, vivem um momento de ebulição. Em setembro, a liderança nesse nicho de periódicos mudou de mãos pela primeira vez, quando a Scientific Reports, lançada pelo grupo Springer Nature em 2011, publicou, no intervalo de 30 dias, um total de 1.940 papers. A revista superou a PLOS One, respeitada publicação lançada em 2006 pela organização sem fins lucrativos Public Library of Science (PLOS), que publicou 1.746 artigos em setembro. Em agosto, a PLOS One conseguira manter a dianteira por estreitos 40 artigos.

Ambas as publicações disseminam papers de um largo espectro de disciplinas, que incluem as ciências, as engenharias e a matemática, embora a PLOS One reúna um conjunto maior de artigos no campo das ciências da vida e a nova líder, no das ciências naturais. A ascensão da Scientific Reports é explicada por um conjunto de fatores. Uma das vantagens competitivas é o fator de impacto, indicador da repercussão da produção científica publicada. Atualmente, o índice é de 5,2. Significa que os artigos publicados na revista em 2013 e 2014 receberam, em média, 5,2 citações em outros papers em 2015. O índice parece baixo quando comparado a outros periódicos do grupo – o fator de impacto da Nature é de 38,1. Mas, na verdade, é um índice vigoroso para um tipo de revista que só existe na internet, publica uma grande massa de artigos e não exige que os autores apresentem novidades em seus manuscritos – basta que os dados sejam sólidos.

Já a PLOS One tem visto seu fator de impacto cair ao longo do tempo – hoje, o índice é de 3, ante 4,4 em 2010. Para a bióloga Véronique Kiermer, editora executiva das revistas PLOS, a importância do fator de impacto deve ser relativizada em uma categoria de revistas que publica artigos de áreas variadas, cada qual com uma tradição de citação, e é menos restritiva do que periódicos tradicionais, admitindo até mesmo papers sobre pesquisas que chegaram a resultados negativos ou inconclusivos. “Esse tipo de artigo recebe naturalmente poucas citações”, escreveu Kiermer no blog da PLOS em julho. Ela, contudo, defende a divulgação desse tipo de paper como forma de evitar a publicação de resultados parciais ou enviesados de pesquisas. O auge da PLOS One foi registrado no ano de 2013, quando publicou 31.509 artigos. Em 2015, o total anual foi 28.105.

Outro ponto do duelo entre as revistas tem a ver com a capacidade de publicar artigos rapidamente, qualidade muito valorizada por autores que recorrem aos mega-journals. Um estudo recente feito pelo especialista norte-americano em bibliometria Phil Davis comparou os prazos de aceitação e de publicação nos dois periódicos, depois de analisar um conjunto de 100 artigos de cada uma delas. O trâmite de um artigo na Scientific Reports, incluindo todas as etapas do processo de revisão por pares, demorou 99 dias, ante 132 na PLOS One. Depois que o artigo é aceito, a PLOS One publica mais rapidamente: em média em 19 dias, diante de 27 da concorrente. Mas, somando os dois prazos, a vantagem da Scientific Reports foi de 25 dias. Um estudo feito em 2013 por pesquisadores da Finlândia mostrou que o prazo de publicação em revistas científicas tradicionais oscila de nove a 18 meses, dependendo da área do conhecimento.


 
Dados brutos
Outra diferença da revista do grupo Springer Nature está relacionada às exigências feitas aos autores. Enquanto a PLOS One obriga os pesquisadores a disponibilizarem os dados brutos de suas pesquisas em repositórios abertos, a fim de que possam ser consultados por outros pesquisadores, a concorrente do grupo Nature apenas recomenda essa medida de transparência.

Os mega-journals foram uma grande novidade no universo das publicações científicas dos últimos 10 anos. Eles despontaram com um modelo de negócios diferente dos periódicos tradicionais, voltado para a difusão de informação científica na internet. Funcionam em acesso aberto, no qual qualquer interessado pode ler os artigos na web sem pagar por isso. A remuneração não vem de assinaturas nem da comercialização de anúncios, mas exclusivamente de uma taxa paga pelos autores dos artigos – cada paper, depois de submetido à revisão por pares e aceito para publicação, custa determinada quantia. Um fator importante desse modelo é a baixa rejeição de artigos. A PLOS One, por exemplo, publica entre 65% e 70% dos manuscritos que recebe. A Scientific Reports é mais seletiva: publica em torno de 55% dos papers submetidos.

A PLOS One dominou o universo dos mega-journals por 10 anos. Com um corpo de revisores de alto nível, desafiou a ideia de que o meio digital on-line era impróprio para a divulgação de conteúdo científico de qualidade, ainda que aceite artigos independentemente do grau de novidade de seus achados. Com isso, acumulou prestígio. “Pesquisadores brasileiros de várias disciplinas sentem-se estimulados a publicar na PLOS One porque a revista é valorizada pela avaliação de vários programas de pós-graduação”, afirma Abel Packer, coordenador da biblioteca eletrônica Scielo Brasil, referindo-se ao sistema Qualis, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), que dá um peso elevado para papers publicados nesse periódico em áreas como biotecnologia e engenharias. “Isso não se observa ainda com a Scientific Reports, que é uma revista bem mais nova.” Na PLOS One, autores brasileiros são responsáveis por 1,77% dos registros de artigos, segundo o Science Citation Index Expanded da base de dados Web of Science. Já na Scientific Reports, o país é responsável por 0,6% dos registros de artigos.

O modelo dos mega-journals foi celebrado como uma alternativa mais democrática aos periódicos tradicionais, pois é capaz de publicar uma enorme quantidade de pesquisas, deixando para a comunidade científica a missão de identificar o que há de relevante nesse universo, tarefa que cabe, nos periódicos tradicionais, a um conjunto restrito de revisores. Essa visão dos mega-journals como ferramenta de popularização da informação científica hoje divide espaço com outra avaliação, a de que se tornaram um nicho de mercado altamente lucrativo para editoras. Tanto para a PLOS One quanto para a Scientific Reports, a taxa de processamento de artigo (APC, na sigla em inglês) é de US$ 1.495, o equivalente a pouco mais de R$ 5 mil. Uma particularidade é que o faturamento da revista avança na mesma medida em que ela publica mais artigos. “Multiplique-se isso pelo número de artigos e se chega a mais de US$ 2,5 milhões de receita mensal de um mega-journal. É um negócio tremendamente lucrativo”, diz Rogério Meneghini, coordenador científico da biblioteca eletrônica SciELO Brasil.



Lucratividade
No lugar de competir com títulos convencionais, os mega-journals passaram a ter uma relação simbiótica com as revistas mais seletivas, criando economias de escala para as editoras, pondera Stephen Pinfield, professor da Universidade de Sheffield, no Reino Unido, líder de um projeto de pesquisa que investiga a trajetória e o futuro dos mega-journals, que deve ser concluído em 2017. Manter um mega-journal pode ajudar uma editora a financiar a operação de publicações que lhe dão muito mais prestígio do que dinheiro. Isso é verdade no caso da PLOS One, cuja lucratividade ajuda a manter publicações do mesmo grupo, mas de escopo mais restrito, como PLOS Biology e PLOS Medicine. Um outro lado dessa simbiose é que os mega-journals também podem se beneficiar do prestígio das revistas irmãs – o sucesso do Scientific Reports dentro do grupo Nature parece ser um exemplo disso.

A rapidez da Scientific Reports em publicar artigos também gerou arranhões na imagem da revista. Em maio de 2015, o então editor da publicação, Mark Maslin, renunciou ao cargo em protesto contra uma nova política do grupo Nature, que passou a oferecer a autores a possibilidade de acelerar o processo de revisão por pares por meio do pagamento de uma taxa extra. Segundo Maslin, que é professor de biogeografia da University College London, o novo sistema permite a quem tem dinheiro publicar mais depressa e subverte a igualdade de condições na avaliação que é tradicional no funcionamento das publicações científicas.

À parte o duelo entre os dois principais mega-journals, o futuro desse tipo de publicação envolve um certo grau de incerteza. “Tudo dependerá da forma como o acesso aberto das publicações científicas irá ganhar espaço nos próximos anos”, observa Abel Packer. Ele ressalta o crescimento da tendência de publicar em repositórios de artigos ainda não submetidos à revisão por pares, os chamados pré-prints, levando-os ao escrutínio imediato da comunidade científica. “Um dos principais atrativos dos mega-journals é a publicação rápida, mas nos repositórios a publicação é imediata”, diz. Esse modelo era adotado por poucas áreas da comunidade científica – o repositório arXiv, utilizado pelos físicos há 25 anos, é o principal exemplo –, mas começa a ser adotado em outras disciplinas, como a biologia e as ciências sociais. “Num cenário que parece cada vez mais provável, pesquisadores vão publicar seus achados preliminares em repositórios para só depois, se for o caso, procurar um periódico de prestígio para divulgar um artigo elaborado. Nesse ambiente, os mega-journals poderiam perder seus atrativos”, avalia Packer.

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