Debates
no Festival de Brasília destacam papel do negro no cinema
- 22/09/2017 20h47
- Brasília
Leandro
Melito - Repórter da Agência Brasil
Debate
sobre o longa-metragem Vazante, de Daniela Thomas, durante o 50º Festival de
Brasília do Cinema Brasileiro Junior Aragão/Divulgação
A representação de pessoas negras
nas telas de cinema e a participação delas nas diferentes etapas da realização
de um filme, em especial no roteiro e na direção, foram temas que permearam as
discussões sobre os filmes da mostra competitiva do 50º Festival de Brasília do
Cinema Brasileiro, que vai até domingo (24).
A curadoria do festival
selecionou para a mostra filmes com diferentes representações de personagens
negros, homens e mulheres, dirigidos por brancos e negros de ambos os sexos, de
diferentes regiões do país. “Ao ver o que se apresentava, seria muito difícil a
curadoria não perceber a importância que tinha essa discussão nesse momento. A
gente não estava no papel de pautar uma discussão e encontrar os filmes, mas os
filmes claramente nos colocavam a possibilidade de trazer essas questões”,
disse à Agência Brasil o diretor artístico do Festival, Eduardo Valente.
A discussão começou intensa após
a primeira noite da mostra competitiva. O filme Vazante, dirigido por
Daniela Thomas, foi aplaudido após a exibição no último sábado (17), mas
recebeu uma série de críticas de negros e negras durante o debate sobre a obra,
realizado no dia seguinte com a presença da diretora e de parte do elenco. “Num
filme de época, quando dirigido por um diretor branco, escrito por um
roteirista branco, em geral, os atores negros fazem escravos. Escravos em geral
são só escravos, não são pessoas, temos que pensar sobre isso, sobre a
subjetividade das pessoas escravizadas”, questionou a atriz Mariana Nunez.
O ator Fabrício de Oliveira, que
é negro e está no elenco de Vazante, disse que há subjetividade nos
personagens, mas que o filme poderia estar “mais recortado para esse olhar,
ainda mais sendo feito hoje”. Após assistir ao filme completo pela primeira vez
durante o festival, o ator disse que o resultado despertou nele uma série de
questionamentos. “Acho importante que esse filme seja realmente discutido, que
a gente se coloque mesmo. Porque eu acho que ele traz essa questão do recorte
estar sendo sempre pelo olhar branco, mas que ao mesmo tempo é parte da nossa
história.”
O ator
Fabrício de Oliveira e a diretora Daniela Thomas durante debate no 50º Festival
de Brasília do Cinema Brasileiro Junior Aragão/Divulgação
Receptiva às críticas, a diretora Daniela Thomas
afirmou durante o debate que hoje não faria o mesmo filme, mas considera que a
obra terá um papel importante em fomentar esse tipo de discussão no cinema
nacional. “Tratando-se de um branco e do ponto de vista da menina, vai suscitar
muita discussão, mas ao mesmo tempo eu me sinto honrada e orgulhosa de poder
estar no meio dessa discussão e ouvir essas vozes que eu ouço muito raramente.
Para mim está sendo um aprendizado.”
Representatividade
Saiba Mais
A discussão sobre o protagonismo negro no cinema
também foi tema central do debate sobre o filme Café com Canela,
dirigido por Ary Rosa e Glenda Nicácio. “Para ser roteirista, preciso me
alimentar de imagens, e tem várias que sempre me foram negadas historicamente.
E a primeira que me alimentou ontem foi quando eu vi cinco mulheres negras
subindo no palco pra apresentar um longa-metragem em Brasília”, comemorou a
roteirista Francine Barbosa.
Além da diretora, todo elenco é de atores e atrizes
negras. O filme é uma ficção ambientada no Recôncavo Baiano. A trama é
protagonizada por duas mulheres que se ajudam em momentos cruciais da vida. Nas
palavras da diretora, é um filme que trata de afeto e de encontro. “As atrizes
se encontram, o filme se encontra, o público se encontra com o filme, aparentemente.
O filme propõe um encontro com os nossos, com os que não foram vistos ou com os
que são vistos sempre da mesma forma, no plano secundário.”
Glenda considera que a experiência de compartilhar
a produção com outras mulheres negras potencializou o filme. “Me entendi melhor
como mulher negra depois de ter feito Café [com Canela]”, afirmou
a cineasta durante o debate.
Outro filme que suscitou debate sobre o tema foi a
produção paraibana Nó do Diabo, dirigido por Ramon Porto Mota, Gabriel
Martins, Ian Abé e Jhésus Tribuzi. Dividida em cinco capítulos, a ficção de
terror trata da herança escravocrata no Brasil.
Gabriel Martins, um dos diretores, disse que, por
causa da temática, teve dificuldade de dirigir seu episódio e de assistir ao
longa completo durante a sessão no festival. “Foi muito difícil porque ao mesmo
tempo que existe para um uma crença clara e um entendimento de porque estar
fazendo esse filme daquele jeito, é impossível negar o quanto de mim está ali
também e o quanto daquela violência não se apagou.”
Críticas
O longa-metragem pernambucano Por trás da linha
de escudos, de Marcelo Gomes, que retrata o cotidiano da Tropa de Choque da
Polícia Militar de Pernambuco, dividiu as reações da plateia após a exibição,
entre vaias e aplausos, e recebeu duras críticas durante o debate. Uma delas
veio da cineasta Jéssica Queiroz, diretora do curta Peripatético, que
trata da execução de um jovem pela Polícia Militar após os ataques da facção
criminosa PCC em 2006. A diretora se sentiu incomodada com uma cena do
longa-metragem de Gomes em que o diretor acompanhou uma abordagem da tropa de
choque em uma unidade para menores infratores. “Você tem corpos negros nus na
cadeia, você tem aquela galera sentada em um ato de submissão e você nunca
humaniza aqueles garotos, você não fala com eles”, criticou.
Gomes ouviu as críticas e ao final do debate disse
que todas, mesmo as mais incisivas, estimulam a reflexão sobre seu trabalho. “O
filme já teve sessões super tensas, a gente já ouviu falas muito contundentes
contrárias e de rejeição ao filme, em nenhum momento eu achei que isso fosse
uma censura ou um autoritarismo. O filme provoca uma reatividade emocional nas
pessoas e eu entendo totalmente de onde ela vem e que isso gera evidentemente
falas mais incisivas.”
“É uma conversa que muitas vezes deve ser tensa
porque o assunto é duro, é difícil, o assunto se refere a uma situação
histórica em vários graus dela, seja na arte, no audiovisual e na vida do
Brasil”, analisou o diretor artístico do Festival, Eduardo Valente, que
acredita que as discussões sobre o assunto devem continuar até a última sessão,
que ocorre neste sábado (23).
Thamires Vieira, produtora-executiva do
curta-metragem alagoano As Melhores Noites de Veroni e representante da
Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (Apan), disse que parte da
discussão atual é resultado dos debates que foram iniciados ano passado e que
se refletem na participação de negros na comissão de seleção de
longas-metragens e no júri oficial. “Ver pessoas negras nesses espaços faz com
que tudo gire em questão pra que a gente consiga afunilar e alinhar o que a
gente tá tentando discutir há muito tempo.” A Apan foi criada na edição do ano
passado do Festival de Brasília, após um debate sobre a presença do negro no
cinema.
Edição: Luana
Lourenço