Cinema
negro no Brasil é protagonizado por mulheres, diz pesquisadora
- 26/12/2015 08h27
- Rio de Janeiro
Isabela
Vieira - Repórter da Agência Brasil
Rio de
Janeiro - Historiadora e coordenadora do Fórum Itinerante de Cinema Negro
(Ficine) Janaína OliveiraFernando Frazão / Agência Brasil
Com quatro sessões lotadas no
prestigiado Cinema Odeon – incluindo a primeira lotação para 600 pessoas após
reforma da casa, no centro do Rio de Janeiro –, o filme Kbela, de Yasmin
Thainá, é um dos mais importantes representantes de uma leva de produções
feitas por realizadoras negras que ganharam o mundo em 2015. São narrativas que
contam com mulheres negras na direção, na produção e como protagonistas, em um
terreno onde elas costumam ser estereotipadas.
Levantamento da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (Uerj), feito em 2014, já apontava para a subrrepresentação da mulher negra no
cinema nacional. Para a professora do Instituto Federal do Rio de
Janeiro (IFRJ) e doutora em história, Janaína Oliveira, Kbela rompeu
essa lógica em 2015.
Coordenadora do Fórum Itinerante
de Cinema Negro (Ficine), um espaço de formação e reflexão sobre a produção de
realizadores negros, Janaína afirma que Kbela não está sozinho.
Segundo a pesquisadora, que em
2015 circulou por festivais em países como Burkina Fasso, Cabo Verde e Cuba
discutindo e divulgando essas produções, os filmes das realizadoras negras
brasileiras alcançaram qualidade internacional e já são uma referência, embora
pouco conhecidos no próprio país.
A professora, que é curadora do
Festival Panafricano de Cinema e Televisão de Ouagadougou (Fespaco), o maior de
todo o continente, recebeu a Agência Brasil em seu apartamento, em Santa
Teresa, para conversar sobre a repercussão dessas produções brasileiras. Para
ela, o cinema negro é um campo político, de luta por representação e
desconstrução de estereótipos.
Leia os principais trechos da
entrevista:
Agência Brasil: O que é o
cinema negro?
Janaína
Oliveira: O que eu venho dizendo, e as pessoas ficam
chateadas, é que não dá para definir cinema negro. É um campo político, de luta
por representação, de desconstrução de estereótipos, de tornar as
representações mais complexas, de ampliação de representações nos espaços mais
diversos. Há quem defina, eu não defini. Definir é limitar. O cinema negro tem
toda uma história, que começa nos Estados Unidos, passa pela diáspora negra,
caminha por vários lugares. Por exemplo, hoje, além do samba, carnaval e
futebol, temos o estereótipo da violência na favela presente. [O filme] Cidade
de Deus [ambientado em uma favela e com protagonistas negros] claramente
não é cinema negro. A questão é: dá para fazer imagens contra-hegemônicas, que
desconstroem o estereótipo dentro de um grande estúdio de cinema ou de uma
grande rede de televisão? É difícil.
Agência Brasil: Qual foi
sua primeira experiência com esse formato?
Janaína: Sempre
gostei de cinema e muito de cinema africano. O primeiro filme africano que vi
foi no festival de Cinema do Rio [de Janeiro], o Vida sobre a Terra, de
Abderrahmane Sissako [diretor, escritor e cineasta da Mautiânia, autor de Timbuktu,
longa-metragem que concorreu ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2014 e a
prêmio no Festival de Cannes no mesmo ano].
Agência Brasil: Quem está
produzindo cinema negro hoje no Brasil?
Janaína: Antes é importante esclarecer que estamos falando de curta-metragens, falar de longa-metragem é outra coisa, são pouquíssimos os negros que fizeram filmes de longa-metragem de ficção na nova geração, aliás, fica a provocação. Nesse universo, onde as pessoas efetivamente produzem – seja com ajuda de editais, seja nas universidades –, o que temos, de filmes de expressão, que atingiram patamar de técnica e de qualidade são os filmes feitos por mulheres negras. E são várias.
Agência Brasil; Quais?
Janaína: São as produções de Renata Martins, que fez Aquém das Nuvens e agora está fazendo uma websérie fenomenal, a Empoderadas, que só fala de mulheres negras, tem a Juliana Vicente, que fez o Cores e botas e o Minas do Rap e está produzindo um filme sobre os Racionais MCs. Tem a Viviane Ferreira, que fez o Dia de Jerusa, que foi para [o Festival de] Cannes. Tem uma menina que está nos Estados Unidos, Eliciana Nascimento, autora de O tempo dos Orixás, tem Everlaine Morais, de Sergipe, que fez dois curtas muito bons e vai estudar cinema em Cuba. E do Tela Preta [coletivo de realizadoras negras ligado à Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)], a Larissa Fulana de Tal, que fez o Lápis de Cor e acabou de lançar o Cinzas. No Rio, o nome da vez é Yasmin Thayná, que está bombando com o Kbela. Um filmaço, no sentido da técnica e das referências. Quer mais?
Agência Brasil: Então há
mais filmes com estética e cultura negra nos últimos anos?
Janaína: Nos últimos dez anos nos acostumamos a ver mais negros nas telas fazendo alguma coisa. Mas é pontualmente, fazendo algumas coisas. Ainda estamos presos a um universo de estereótipo. Que não é só o do bandido, o do cafetão, mas o da falta de complexidade das personagens. Os relacionamentos amorosos, os dilemas da vida, onde estão essas coisas? Não estão nas telas.
Agência Brasil: Qual a
novidade nas produções brasileiras que você tem levado aos festivais?
Janaína: Uma
coisa bacana é que nessa conexão com o continente africano, estamos
redespertando debates. Em Moçambique, por exemplo, temos o retorno de que os vídeos
sobre transição capilar (do cabelo alisado para o cabelo crespo, natural) tem
ajudado mulheres e meninas de lá. Esses produtos, principalmente filmes
disponíveis no Youtube, são feitos por meninas negras brasileiras. É quase uma
rede de solidariedade. O audiovisual tem a capacidade de fazer isso.
Agência Brasil: E como
aumentar a demanda por esse conteúdo no Brasil?
Janaína: A
formação de público é uma questão central. Os filmes precisam ser vistos. Mas
mostrar os filmes [em salas de cinema ou televisão] não é suficiente, se fosse,
o problema estava resolvido. As pessoas não veem porque elas não gostam e mudar
o gosto leva muito tempo. Enquanto você tem uma novela premiada como a Lado a
Lado, da Rede Globo [que recebeu o Emmy Internacional em 2013], passando às
18h, em 50 anos da principal emissora de TV do país, você tem uma série como o
Sexo e as Negas, em horário nobre com forte divulgação comercial e circulação.
Agência Brasil: Mas é
preciso começar a estimular, não?
Janaína: Ainda vivemos em um contexto de imagens que precisamos desconstruir. O cinema é uma indústria, uma indústria de dinheiro que constrói imagens que querem ser vistas. Temos um padrão de cinema de Hollywood, daquilo que você espera ver. E esse padrão repete as estruturas de um universo eurocêntrico onde muito claramente está dividido o lugar das pessoas negras e brancas. Então, o que você vê, em geral, são negros e negras em situação de subserviência, nunca em destaque, sempre com atributos negativos. Isso está no universo da colonização da cultura, do gosto, da estética. É a mesma razão para a gente falar: a coisa está preta quando a situação é negativa, por que denegrir é uma coisa ruim? Por que usar “a coisa fica preta” é ruim? A gente não inventou isso, a gente reproduz isso e isso está nas telas. O cinema que existe é um cinema eurocêntrico que determina padrões estéticos, narrativos, rítmicos e musicais. Se não é isso, pessoas não gostam. Os filmes brasileiros de sucesso, como Tropa de Elite, seguem esse padrão.
Agência Brasil: E o que é preciso fazer?
Janaína: Formar redes de distribuição desses filmes. Se possível, junto com debates. É ir além da exibição. As novas imagens têm que chegar nas salas de aula, criar aderência. Além de mais editais, mais parcerias e a presença do Estado, que facilita a produção e a circulação.
Edição: Lílian Beraldo