domingo, 16 de agosto de 2015

Cade a cachaça? É pinga de Minas?

Água que
passarinho não bebe



Esta postagem é minha.  Sou o Paulo, de BH agora em Parauapebas\PA.  Li esta matéria há tempos, talvez uns dois, três anos. Mas me  perseguiu todos estes tempos e agora decidi republicar.
Viva a cachaça.  Louvor a Pinga.  Seca, mineira, sem adoçar. Para nós mineiros na diáspora, o mercado central é a praça do país esquecido. Suas pingas e tira gostos, o manjar de deuses. A caipirinha com azeitonas grandes, limão  e soda, divinos. O cu de burro  (pinga pura num copo, noutro ou na mão, sal e limão) ou a pinga com mel, ou de preferencia mesmo, um copo americano na risca com torresmo ou jiló, inesquecíveis e rituais. Paulo, autor do blog.












Ela é genuinamente brasileira e – sem excessos – funciona muito bem acompanhada de bons papos e de uma refeição gostosa. A cachaça solta a língua e o coração e, antes de ser apenas uma bebida, é quase um remédio: dizem que até cura resfriado. Leia sem moderação, por Alessandro Meiguins .


O doutor da família era mesmo seu Pedro.
Sob sua batuta, difícil um daqueles guris assombrear sequer uma tosse, quanto mais ficar indolente, cair de cama. E olhe que eram oito, a levantar poeira e fazer sandices. É que seu Pedro sabia das coisas: medicava, sem esperar a doença chegar. Com as crianças pequeninas, naqueles primeiros passos, iniciava a dar para cada uma delas uma colher de azeite, “para engraxar as tripas”. Depois, quase de uma vez só, outra colherinha (daquelas de chá), esta com o segredo da saúde: pinga com limão – e a frase explicativa do doutor: “Bom para cortar gripe”. Isso todos os dias, diga-se de passagem. “Foi desse jeito, cresci tomando cachaça”, conta o filho do seu Pedro, Pedro José, que recebeu a sua primeira de muitas colheradas meio tarde, já na beira dos 2 anos de idade.
Causos assim (esse bem verdadeiro, sim senhor) permeiam quase tudo que é conversa sobre cachaça. Não, esta reportagem não é sobre papo de bêbado, nem daqueles textos que militam na beberagem desmedida. É, sim, sobre a bebida mais brasileira que há, criada (e degustada) aqui mesmo nestas terras verde-amarelas, parte inegável da nossa cultura, presente em batizados, festas, casórios, enterros, botecos, restaurantes, adegas pessoais.
Com vocês, uma dose da marvada, da pinga, da branquinha, da caninha, daquela que matou o guarda, da amansa-corno, da aguardente, da cana e do mé. Ou, simplesmente, uma dose (inebriante) de causos de cachaça.


Elixir da vida
Claro, o Ministério da Saúde adverte: beber faz mal à saúde (e ainda faz ver dois dedos no lugar de um, ou quatro no lugar de dois, como faz o incrível pau-d’água de Guimarães Rosa, em Tutaméia). Mas, à parte os males previsíveis causados pelo excesso de consumo, as bebidas destiladas como a pinga surgiram originalmente para curar moléstias. Egípcios, gregos, árabes e asiáticos logo desenvolveram sua própria receita da água que pegava fogo – água ardente –, e até os alquimistas se afeiçoaram à danada, transformando-a em duvidosos elixires de longevidade. Tanto era disseminado o uso dessa boa água da vida, que os primeiros portugueses que por aqui chegaram logo desenvolveram no Brasil uma receita diferente da bebida, com a cana que vicejou neste solo. Nascia nas casas de “cozer méis”, nos engenhos de Pernambuco, a nossa velha e boa cachaça.
Uma das origens do nome é curiosa. Dizem que vem do nome feminino do porco selvagem encontrado nas matas nordestinas, o catitu, que era chamado de “cachaça”. Os portugueses usavam a beberagem para amolecer a carne do suíno, e de cara aliaram a bebida a dois elementos simbólicos de sua história: uma boa refeição e a lama dos porres homéricos. “Para os antigos, o álcool desvelava a verdade. A franqueza da língua, a transparência dos sentimentos, a revelação das emoções”, conta o historiador Henrique Carneiro no Pequeno Dicionário da História das Drogas e Bebidas. Talvez aí a pista para o atual uso disseminado da cachaça, a terceira bebida destilada mais consumida no mundo.

Boazinha para tudo
No Brasil, a popularidade da caninha é tão grande que até marca ligada a time de futebol existe. Não só uma. Mas, afinal, por que beber algo que é realmente forte, arrepia a espinha, embrulha o estômago e quase trava a língua (isso no primeiro gole)? Sem sombra de dúvida, pelo efeito relaxante, agradável e eufórico que a danada vai disseminando pelo corpo e pela alma. Sim, quem já experimentou sabe o quanto a cachaça pode ser boa, por exemplo, para despertar excelentes conversas. É como se tirasse aquela vergonha inicial de sacar uma história da manga. E uma coisa acaba se juntando a outra: gostar de conversar horas a fio e tomar um trago ou outro. Claro, muita gente faz isso com café, chá e uns biscoitinhos de polvilho. Outros, com a marvada. “Raríssimos amigos não a apreciam. Por isso, tive muitos encontros com a fala solta, cheia de causos e causos. E piadas”, conta o químico Erwin Weinmann, no prefácio de seu livro Cachaça, a Bebida Brasileira.
Claro, nem só de conversa vive o homem. Cachaça cai bem com comidinhas e refeições.“Ela é uma das poucas coisas que combinam com tudo. Cachaça é a guia, que vem antes da comida, o abre-alas do prazer, tem a versatilidade de combinar com qualquer prato e pode ser tomada como um licor, no pós-comida. Que bebida é essa que vai bem antes e depois?”, diz, bêbado de amores, o cineasta mineiro Kiko Goifman. Paixão, aliás, é outro ótimo ingrediente para se ter uma boa conversa com a dita.Como diz Kiko:“A cachaça, diferentemente de outras bebidas, proporciona um estado de alteração de sociabilidade.Se o champanhe é visto como a bebida da euforia, a cachaça pode ser a bebida da comunhão. Mas nunca se esqueça: se estiver sozinho, triste, aceite também a companhia dela. A cachaça e um velho vinil do Roberto são ótimos companheiros para todas as dores”.
Espírito de união
Sim, talvez você ainda esteja sem entender o porquê de a cachaça ser tão festejada, apreciada, cultuada por brasileiros de diversas raças e estirpes, de norte a sul. Para conversar, como já foi dito, até um cafezinho bem feito ajuda. Para comer bem, sem frescura, um prato delicioso cai bem até com água da bica. Cachaça obedece às insondáveis leis do coração. E amor, puxa, de todos os jeitos se ama, não? O que a cachaça tem, afinal de contas, de tão especial – o que é que a danada tem? “Ansiamos por experiências que nos mostrem um lampejo de conexão com tudo que nos rodeia, com outros seres que como nós compartilham desse universo misterioso. De certo –modo, o álcool pode diluir a rigidez das fronteiras, às vezes, tão cristalizadas, tão endurecidas. Um pouco de ilusão acalma nossos anseios”, diz o psiquiatra Jonas Melman, que, mesmo sem beber, visualiza um uso universal da bebida: a união.
Mas quem talvez tenha melhor explicado o uso final de degustar uma cachaça foi o cordelista Pedro Queiroz, de Juazeiro do Norte (CE). Disse assim o poeta:

Existe sempre um motivo
Pra se tomar um goró
Bebe-se para curar gripe
Bebe quem se sente só
Bebe quem tá enrolado
E quer desatar nó.

Beba pra comemorar
Beba pra acender o facho
Pra se ter inspiração
Motivo em que eu me encaixo
Só quem não bebe é sino
Por ter a boca pra baixo
Saideira
Assim, cada um com seu motivo, quem gosta segue bebendo um pouquinho de cachaça. Pedro José, a criança do causo que abre esta reportagem, por sua conta e vontade não parou de bebericar vez ou outra.Mais conhecido como Pedrão, hoje o fotógrafo Pedro (José) Martinelli tem uma reserva pessoal de 900 litros de aguardente em casa, alocada em cinco barris de carvalho – últimas peças de uma tradicional fábrica no Brás, em São Paulo. “Não se pode saber os rumos do país, da economia. Então esse é meu plano de previdência privada”, graceja. Em um ano, irá abrir um dos barris de 200 litros, lotados com a boa cachaça da Fazenda Babilônia, de Minas Gerais. O plano é tomá-la envelhecida, levemente amarelada pela madeira.

Claro, seria ótimo terminar o texto por aqui. Mas uma prosa de cachaça sempre leva a outra.Me faz pensar na rápida conversa que tive com o cartunista Jaguar, conhecido apreciador do tema. De pronto, respondeu ao telefone: “Eu não tenho tempo para responder suas perguntas. Estou cheio de textos e charges atrasadas. Cheio! E agora, estou indo para o bar, encontrar uns amigos”. Claro, Jaguar. Peça para nós uma dose, e não se esqueça de oferecer um golinho pro santo. Santo e cachaça, essa sim outra boa história.
Lembra uma noite em que, todos caindo pelas tabelas, puxa, um pouco de tudo aconteceu. Foi assim...
Para saber mais
Livros:
Prelúdio da Cachaça, Luis da Câmara Cascudo, Itatiaia
Cachaça, a Bebida Brasileira, Erwin Weimann, Terceiro Nome
Pequena Enciclopédia da História das Drogas e Bebidas, Henrique Carneiro, Campus

Água que passarinho não bebe
Dicas do repórter Alessandro Meiguins para você mergulhar - com moderação - no universo da cachaça
Sites
Nos botecos
Ao beber, esqueça as destiladas de marcas muitos populares, como Pitú ou 51. Experimente as mineiras, de Januária ou Salinas. Ou as vindas de Parati, Rio de Janeiro. Minha dica de autor, e preferência de bar: Germana ou Claudionor. Se possível, intercale. Elas combinam bem. Depois, "um café, um cigarro e um beijo de uma mulata chamada Leonor, ou Dagmar".
Não esqueça
Por favor, se perder a conta da bebida, deixe o carro no estacionamento. Vá proseando com o taxista até sua casa. Todo taxista adora conversar. Aproveite.



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